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Estudo propõe novo protocolo para o tratamento de talassemia

O acúmulo de ferro nas células do coração é uma das complicações de saúde mais temidas por portadores de talassemia major

Karina Toledo | Agência FAPESP – O acúmulo de ferro nas células do coração, que pode resultar em insuficiência cardíaca ou arritmias fatais, é uma das complicações de saúde mais temidas por portadores de talassemia major – doença hereditária popularmente conhecida como anemia do mediterrâneo.

Em artigo publicado na revista Blood, pesquisadores brasileiros demonstraram que o problema pode ser combatido com o uso diário de anlodipina – um medicamento barato, com poucos efeitos colaterais e já disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) para o tratamento de hipertensão.

“Esse fármaco tem sido usado na clínica há décadas e é considerado seguro para adultos e crianças. Pode ser aliado à terapia convencional com grande benefício para os pacientes e poucos efeitos colaterais”, afirmou Juliano de Lara Fernandes, pesquisador do Instituto de Ensino e Pesquisa José Michel Kalaf, em Campinas, e coordenador do estudo apoiado pela FAPESP.

O trabalho foi feito em parceria com pesquisadores do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Centro Infantil Boldrini e Centro de Hematologia de São Paulo, entre outros.

Conforme explicou Fernandes, a talassemia major é causada por uma mutação genética que compromete a estrutura da hemoglobina – proteína que confere a cor vermelha ao sangue. Como resultado, formam-se hemácias mais frágeis, com menor tempo de duração no organismo e menor capacidade de transportar oxigênio.

Para evitar os prejuízos decorrentes da anemia crônica, os portadores da doença precisam receber transfusões sanguíneas a cada três ou quatro semanas. O tratamento, porém, causa um efeito adverso: aumenta a concentração de ferro no organismo.

“Normalmente, quando novas hemácias são produzidas, o estoque de ferro já presente nas células antigas é reaproveitado. Porém, quando o paciente recebe uma transfusão, com o sangue vem uma quantidade extra do mineral. Após dez transfusões, a concentração chega a dobrar”, explicou o pesquisador.

Como não há no corpo humano mecanismos para excretar o ferro excedente, a substância começa a se acumular nas células de diversos órgãos – especialmente no coração e no fígado. Para minimizar o problema, os pacientes costumam ser tratados com medicamentos quelantes, substâncias capazes de se ligar ao ferro, produzindo um composto que pode ser excretado por meio da urina ou das fezes.

“A terapia quelante funciona bem em órgãos periféricos, mas depois que o mineral entra nas células do coração é difícil retirá-lo de lá. As disfunções miocárdicas são hoje a principal causa de mortalidade entre os talassêmicos e podem surgir a partir dos 10 anos de idade”, afirmou Fernandes.

Segundo o pesquisador, o grande problema ocorre quando entra nas células cardíacas uma espécie tóxica de ferro conhecida como NTBI (ferro livre não ligado à transferrina, na sigla em inglês), que pode causar a morte celular. Normalmente, esse tipo de molécula está presente em pequenas quantidades na circulação, mas sua concentração pode aumentar com as sucessivas transfusões.

Enquanto no fígado as moléculas de ferro NTBI podem entrar e sair livremente sem grandes prejuízos ao órgão, para penetrar nas células cardíacas elas dependem de um tipo específico de canal, cujo papel principal é levar moléculas de cálcio para o meio intracelular.

“Pensamos então que drogas capazes de bloquear esse canal de cálcio poderiam também evitar a entrada do ferro tóxico nas células cardíacas e aumentar a eficácia da terapia quelante. Os bloqueadores de canal de cálcio são fármacos já amplamente usados para tratar problemas como hipertensão e arritmias”, contou Fernandes.

Ensaio clínico

Para testar a hipótese, foram selecionados 62 pacientes com talassemia major divididos em dois grupos. Como a doença é rara, o número é considerado bastante representativo. Os dois grupos de estudo receberam a terapia quelante convencional, mas apenas um teve o tratamento associado à anlodipina. O outro recebeu placebo.

Antes de iniciar o ensaio clínico, todos os pacientes foram submetidos a um exame de ressonância magnética cardíaca e hepática, que permite verificar se há sobrecarga de ferro nos órgãos. De acordo com o resultado, os participantes de cada grupo foram subdivididos entre aqueles com ou sem acúmulo de ferro cardíaco inicial. Após um ano de seguimento, os exames foram repetidos.

“Nos pacientes que apresentavam sobrecarga inicial de ferro cardíaco e foram tratados com anlodipina, foi observada uma redução de 21% na concentração do mineral nos órgãos, enquanto naqueles que tinham sobrecarga e receberam apenas quelante e placebo houve um aumento de 2%”, contou o pesquisador.

Já quando foram comparados apenas os dados dos subgrupos sem sobrecarga, os resultados dos que receberam anlodipina foram semelhantes aos dos participantes que receberam placebo.

“Possivelmente, seria necessário um acompanhamento mais longo para ver os benefícios da terapia preventiva com anlodipina, ou seja, para quem ainda não sofre com a sobrecarga de ferro. No entanto, para os pacientes que já apresentam acúmulo de ferro, os resultados mostram que vale a pena usar anlodipina. Não precisa mudar a terapia que já é feita, basta acrescentar o anti-hipertensivo por via oral diariamente”, avaliou Fernandes.

De acordo com o pesquisador, existem atualmente no Brasil cerca de 350 pacientes com talassemia major – forma mais grave da doença associada à presença da mutação em homozigose (herdada por parte do pai e da mãe). Já os portadores de talassemia intermedia (mutação herdada de apenas um dos progenitores) somam aproximadamente 700 pessoas no Brasil e podem não apresentar sintomas ou ter uma manifestação mais leve da doença, necessitando de transfusões com menos frequência.

O artigo A randomized trial of amlodipine in addition to standard chelation therapy in patients with thalassemia major (doi: 10.1182/blood-2016-06-721183) pode ser lido em www.bloodjournal.org/content/128/12/1555.long?sso-checked=true.

Fonte: Agência FAPESP

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