As talassemias constituem um grupo de condições hereditárias caracterizadas por defeitos na produção das cadeias que formam a hemoglobina (Hb). Essas condições são heterogêneas devido a diferentes mutações nos genes que codificam as cadeias α, β e δ da globina, resultando em uma síntese deficiente de hemoglobina e, consequentemente, em ineficiência na formação das células vermelhas, contribuindo para o fardo global da anemia.¹,²

As talassemias apresentam uma ampla variedade de manifestações clínicas e laboratoriais, dependendo da cadeia afetada e do grau de desequilíbrio na produção quantitativa.¹,³,⁴ Os tipos mais prevalentes de talassemia no mundo são a alfa-talassemia e a beta-talassemia.¹,² A beta-talassemia resulta de uma produção defeituosa de β-globina, enquanto a alfa-talassemia está associada à síntese defeituosa de α-globina.¹,⁶ Ambas as condições são fenotipicamente heterogêneas, variando desde uma condição leve e assintomática até uma doença potencialmente fatal.¹,³,⁴

A alfa-talassemia abrange quatro apresentações clínicas: portador silencioso (sem manifestações), traço talassêmico alfa (anemia discreta e microcitose), doença da hemoglobina H (anemia moderada a grave) e síndrome da hidropsia fetal da hemoglobina Bart’s (anemia muito grave).¹

A beta-talassemia, tema central desta publicação, inclui três apresentações clínicas: talassemia beta menor/traço talassêmico beta, que corresponde à forma heterozigótica geralmente assintomática; talassemia beta intermediária (anemia leve a grave, podendo necessitar de transfusões de hemácias esporádicas ou crônicas); e talassemia beta maior (anemia grave que exige transfusões de hemácias a cada 2 a 4 semanas desde os primeiros meses de vida).¹,⁵

Mais recentemente, a Federação Internacional de Talassemia (TIF) passou a classificar os pacientes com beta-talassemia como DT (dependentes de transfusão) ou NDT (não dependentes de transfusão), de acordo com a necessidade de transfusões regulares de hemácias ao longo da vida para sobreviverem.⁸

No entanto, o documento da TIF destaca que a dependência de transfusões nem sempre reflete a gravidade subjacente da doença, com práticas que variam globalmente, especialmente em pacientes com fenótipos moderados. Em ensaios clínicos recentes, a classificação entre NDT e DT tem sido frequentemente associada ao perfil transfusional do paciente nos últimos seis meses (por exemplo, <6 unidades/24 semanas de glóbulos vermelhos indicando NDT).⁸

Pacientes com β-talassemia DT dependem de transfusões regulares de concentrados de hemácias e de cuidados médicos contínuos ao longo da vida para sobreviverem; a manutenção de concentrações próximas ao normal de Hb é essencial para garantir o crescimento e desenvolvimento normais desses pacientes até a adolescência.³,⁴,⁹ Após essa fase, os pacientes podem desenvolver complicações relacionadas à eritropoiese ineficaz, anemia crônica e sobrecarga de ferro, resultando, em última análise, em uma menor sobrevida.⁴,⁹,10

A prevalência global da β-talassemia é estimada entre 1 e 9 por 1.000.000 de pessoas, com uma incidência de 1 a cada 100.000 nascimentos para a β-talassemia sintomática,⁵ caracterizando-a como uma doença ultrarrara, definida como uma condição crônica, debilitante ou com risco de vida, com incidência menor ou igual a 1 caso para cada 50.000 habitantes.⁷

Dados epidemiológicos sobre talassemias em geral ou especificamente sobre beta-talassemia no Brasil são escassos, mas fundamentais para o aprimoramento de políticas públicas. Uma publicação do Ministério da Saúde em 2022 reporta o registro de 930 pacientes com talassemias (todos os tipos) no Brasil.⁹

OBJETIVO

Este estudo visa divulgar dados quantitativos e qualitativos dos pacientes cadastrados na Associação Brasileira de Talassemias (ABRASTA), com o objetivo de que a estimativa de pacientes com talassemias em geral e beta-talassemias no Brasil possa contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas, identificação de desafios no acesso ao tratamento e melhorias na qualidade do cuidado e na vida dos pacientes.

METODOLOGIA:

Estudo retrospectivo, descritivo e não intervencional de mundo real, realizado em setembro de 2024, baseado na revisão do cadastro de pacientes com diagnóstico autorrelatado de talassemias do banco de dados da Associação Brasileira de Talassemia (ABRASTA). Variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio padrão, quando aplicável, e variáveis qualitativas, por frequências absolutas (n) e relativas (%).

RESULTADOS:

Informações clínicas e demográficas de pacientes com diagnóstico autorrelatado de talassemia ou outras hemoglobinopatias foram extraídas do banco de dados de cadastro de pacientes da ABRASTA em setembro de 2024. No momento da análise dos dados, o registro contava com 1274 pacientes vivos cadastrados com talassemias, sendo 21 (2%) pacientes com alfa-talassemia, 1010 (79%) com beta-talassemia e 243 (19%) com outros tipos de hemoglobinopatias como a Hemoglobina S-Beta (Doença Falciforme). Do total de pacientes cadastrados com talassemias, 64% (n=819) relataram serem acompanhados por instituições do Sistema Único de Saúde (SUS). A idade média dos pacientes com alfa-talassemia, beta-talassemia e outros tipos de talassemia era, respectivamente, 29 (DP=18), 36 (DP=17), e 41 (DP=15).

Dos pacientes cadastrados com beta-talassemia (n = 1010), 353 (35%) eram do sexo masculino e 656 (65%) do sexo feminino. Um único registro não possui resposta. Na tabela 1 observamos que 60% dos pacientes com diagnóstico de beta-talassemia (606) eram do sudeste, seguido de nordeste 16% (162), sul 14% (143), centro-oeste 6% (63) e norte 4% (36).

Tabela 1. Distribuição regional dos pacientes com diagnóstico autorrelatado de beta-talassemia (traço talassêmico/talassemia menor, talassemia intermediária e talassemia maior)

Total (n = 1010)

Norte

36 (4%)

Nordeste

162 (16%)

Centro-Oeste

63 (6%)

Sudeste

606 (60%)

Sul

143 (14%)

 

Em relação a classificação e a faixa etária atual no momento da análise, a maioria dos adultos 581/883 (69,7%) relataram ter talassemia intermediária ou maior, sendo que do total de pacientes com beta-talassemia (n=1010) apenas 6,5% (n=66) tinham idade menor que 18 anos (tabela 2).

Tabela 2. Classificação dos pacientes com diagnóstico autorrelatado de beta-talassemia segmentado por idade

< 18 anos (n = 127)

18 anos (n = 883)

Total (n = 1010)

Beta talassemia menor/traço talassêmico

35

302

337

Beta-talassemia intermediária

26

281

307

Beta-talassemia maior

66

300

366

DISCUSSÃO:

Este estudo apresenta informações sobre o número de indivíduos com diagnóstico autorrelatado de talassemias registrados no banco de dados da Associação Brasileira de Talassemia (ABRASTA). O total de 1.274 pacientes cadastrados é superior ao divulgado pelo Ministério da Saúde em 2022, que reportou 930 casos de talassemias (de todos os tipos) no Brasil.9No entanto, há diferenças significativas entre as fontes: enquanto o cadastro da ABRASTA baseia-se em diagnósticos autorrelatados pelos pacientes, os dados do Ministério da Saúde provêm de registros oficiais, confirmados até aquele momento, por 40 centros de tratamento especializados em 24 estados.9 Essa distinção é importante, pois o diagnóstico autorrelatado pode conter inconsistências e limitações devido à ausência de verificação clínica formal, ao passo que os dados oficiais refletem confirmações médicas realizadas pelos centros médicos.

Dados mais recentes obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação acerca do registro oficial de pacientes revelam 1.440 pacientes com talassemias (alfa, beta e outras variantes) registrados no sistema Hemovida Web Hemoglobinopatias até 26/09/2024, dos quais 1.243 possuem diagnóstico de beta-talassemia (menor, intermediária e maior).11 Esse número é comparável ao descrito neste estudo, com 1.010 pacientes com beta-talassemia cadastrados na ABRASTA. Contudo, a distribuição dos subtipos de beta-talassemia varia consideravelmente entre as fontes: no banco de dados da ABRASTA foram identificados 337, 307 e 366 pacientes com beta-talassemia menor/traço talassêmico, intermediária e maior, respectivamente, enquanto os dados do Ministério da Saúde registraram 651, 259 e 333 pacientes nas mesmas categorias.11 Não foram encontrados outras publicações que apresentam os números de pacientes brasileiros com beta-talassemia de abrangência nacional.

Considerando os dados de ambas as fontes, e levando em conta a população brasileira de 212,6 milhões conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)12, a prevalência de beta-talassemia no país varia de 4,75 a 5,52 casos por 1.000.000 de habitantes. Esses números são consistentes com a estimativa fornecida pelo Orphanet, que reporta uma prevalência similar para a beta-talassemia globalmente.5

Como mencionado previamente, a apresentação clínica da beta-talassemia pode variar dependendo da sua classificação, sendo provável que o número de pacientes com beta-talassemia menor/traço talassêmico esteja subestimado em ambos os sistemas de registro. Isso ocorre porque indivíduos heterozigóticos para a beta-talassemia são frequentemente assintomáticos e não costumam depender de tratamento crônico ou acompanhamento especializado1, o que dificulta sua identificação tanto pelo banco de dados da ABRASTA quanto pelos centros de atenção especializados. Pacientes com essa forma mais leve de beta-talassemia tendem a não buscar assistência médica regular, o que reduz sua visibilidade nos sistemas de saúde.

Em contrapartida, os pacientes com beta-talassemia maior no Brasil provavelmente estão melhores representados em ambos os registros. Esses pacientes requerem tratamento contínuo e especializado desde os primeiros anos de vida, o que os torna mais integrados aos serviços de saúde. Assim, é mais provável que estejam cadastrados nos sistemas oficiais e em organizações como a ABRASTA, que muitas vezes são pontos de contato importantes para o acesso a tratamentos e suporte especializado.

Uma limitação deste estudo é a ausência de classificação dos pacientes com beta-talassemia em DT e NDT. Essa distinção é fundamental para compreender as necessidades específicas de tratamento e o impacto clínico em cada grupo, mas, no cadastro atual, essa informação não foi categorizada, o que limita a análise mais detalhada dos dados disponíveis. Vale destacar que a β-talassemia maior é frequentemente referida como talassemia dependente de transfusão, enquanto a β-talassemia intermediária é classificada como não dependente de transfusão.10 No entanto, devido ao seu amplo espectro clínico, pacientes com β-talassemia intermediária podem, em alguns casos, necessitar também de transfusões crônicas.1

CONCLUSÃO:

Este estudo fornece uma análise abrangente sobre o número e a distribuição de pacientes com talassemias, especialmente beta-talassemias, no Brasil, a partir de dados autorrelatados registrados na Associação Brasileira de Talassemias (ABRASTA). As informações do número de pacientes beta-talassemicos no país são cruciais para o desenvolvimento de políticas públicas focadas na melhoria do acesso ao diagnóstico e tratamento, além de promover melhorias na qualidade de vida dos pacientes. Com base nos dados aqui apresentados, espera-se que o aprimoramento dos registros e a criação de programas de saúde voltados para o acompanhamento dessas populações possam minimizar complicações a longo prazo e otimizar o cuidado oferecido aos pacientes no Brasil.

Referências:

 

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Orientações para o Diagnóstico e Tratamento das Talassemias Beta [Internet]. 2016. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/orientacoes_diagnostico_tratamento_talassemias_beta.pdf. Acesso em: 22 de agosto de 2024.
  2. Tuo Y, Li Y, Li Y, Ma J, Yang X, Wu S, Jin J, He Z. Global, regional, and national burden of thalassemia, 1990-2021: a systematic analysis for the global burden of disease study 2021. EClinicalMedicine. 2024;72:102619.
  3. Galanello R, Origa R. Beta-thalassemia. Orphanet J Rare Dis. 2010;5(1):11. doi:10.1186/1750-1172-5-11.
  4. Taher AT, Weatherall DJ, Cappellini MD. Thalassaemia. Lancet. 2017. doi:10.1016/s0140-6736(17)31822-6.
  5. Orphanet. Beta-thalassemia [Internet]. Última atualização em abril de 2011. Disponível em: https://www.orpha.net/en/disease/detail/848?name=Beta-thalassemia&mode=name. Acesso em: 22 de agosto de 2024.
  6. Musallam KM, Rivella S, Vichinsky E, Rachmilewitz EA. Non-transfusion-dependent thalassemias. Haematologica. 2013;98(6):833-44. doi:10.3324/haematol.2012.066845.
  7. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. RESOLUÇÃO Nº 563, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2017. 2017. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/conep/documentos/NORMAS-RESOLUCOES/Resoluo_n_563_-_2017_-_Regulamenta_direito_participante_de_pesquisa_com_doenas_ultrarraras.pdf. Acesso em: 22 de agosto de 2024.
  8. Eleftheriou A, Angastiniotis M. Global Thalassaemia Review 2023. Thalassaemia International Federation (TIF). Disponível em: https://thalassaemia.org.cy. Acesso em: 22 de agosto de 2024.
  9. Brasil. Ministério da Saúde. Talassemia: saiba o que é a doença e a importância do diagnóstico precoce [Internet]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/talassemia-saiba-o-que-e-a-doenca-e-a-importancia-do-diagnostico-precoce#:~:text=As%20talassemias%20s%C3%A3o%20um%20grupo,oxig%C3%AAnio%20para%20todo%20o%20corpo. Acesso em: 11 de novembro de 2024.
  10. Cappellini MD, Viprakasit V, Taher AT. An overview of current treatment strategies for β-thalassemia. Expert Opin Orphan Drugs. 2014;2(7):665-79. doi:10.1517/21678707.2014.918503.
  11. FalaBR. Lei de Acesso a Informação. Informações de pacientes com beta-talassemia. Pedido 25072050332202406. Disponível em:https://buscalai.cgu.gov.br/PedidosLai/DetalhePedido?id=7743490. Acesso em: 12 de setembro de 2024.
  12. Secretaria de Comunicação Social. População do Brasil chega a 212,6 milhões de habitantes, aponta IBGE. Publicado em: 29/08/2024. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/08/populacao-do-brasil-chega-a-212-6-milhoes-de-habitantes-aponta-ibge. Acesso em: 12 de setembro de 2024.

 

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